Porventura poucos serão os que se deixam cativar pela filosofia tal como são muitos aqueles que, ao encontrar a raposa do Principezinho, se apressam a ver nela o reflexo dos seus preconceitos. Estamos normalmente couraçados, impenetráveis a qualquer fascínio exterior que venha interromper o nosso marasmo. As nossas evidências são as nossas muralhas confortáveis, os nossos pequenos mundos reduzem-nos à pequenez dos nossos quotidianos. Preferimos os pensamentos sedentários, encaixotados, devidamente arquivados e assustam-nos os abismos e as profundidades. A filosofia surge-nos como a ameaça da esfinge, interpela-nos, desafia-nos, estilhaça as nossas crenças e obriga-nos a tomar consciência de nós mesmos. A filosofia incomoda-nos, obriga-nos a reflectir, a confrontar ideias, a aprofundar e fundamentar as nossas opiniões. A filosofia impede-nos de nos escondermos nos nevoeiros das opiniões do senso comum, partilhadas por muitos e descartáveis porque sensíveis às mudanças dos tempos e das modas. A filosofia exige que nos tomemos a sério e que façamos da nossa vida um projecto em construção, um projecto com sentido e viabilidade.
Para aqueles que acreditam que viver é deixarmo-nos ir na corrente, a filosofia é desnecessária, luxo intelectual, perda de tempo. Para aqueles que confundem ser com parecer e se deixam moldar de acordo com as conveniências, suas e dos outros, a filosofia é a voz da consciência que é preciso silenciar. Para aqueles que preferem as respostas totalitárias, consoladoras, a filosofia é altamente subversiva, revolucionária, conspirativa porque mina os alicerces da autoridade e desafia cada homem a assumir a sua liberdade de pensamento.
Por tudo isto poucos serão os que se deixam cativar pela filosofia. A própria filosofia contribuiu para esse estado de coisas ao distanciar-se da vida real dos homens enclausurando-se nas universidades e em círculos restritos de eruditos. O discurso filosófico tornou-se hermético, transformou-se numa cadeia de raciocínios especiosos quase impenetráveis. A filosofia ganhou teias de aranha, identificou-se com uma antiguidade que se preserva num armário recôndito. O discurso filosófico anquilosou-se, cobriu-se com a patine do tempo e privilegiou as palavras menos utilizadas e os conceitos mais complexos.
Porém, actualmente, a situação modificou-se. A filosofia dá mostras de querer sair da sua caverna e chegar a todos sem se descaracterizar, sem se transformar numa forma qualquer de saber popular. Sem perder a seriedade, a filosofia redescobriu o poder da provocação, da ironia, transformando a incomodidade da interrogação numa arma que conduz à reflexão crítica, à fundamentação criteriosa das ideias.
Continuarão a ser poucos os que se deixam cativar pela filosofia porque as ideias feitas, os preconceitos custam a desaparecer e é mais cómodo persistir na ideia de que a filosofia é assunto demasiado complicado, saber alheado da realidade, quase que místico, quase que fóssil. Num mundo de saberes encaixotados e de ideias prontas a serem consumidas, a filosofia mantém a sua incomodidade e a sua diferença. E no fundo é essa incomodidade e essa diferença que podem atrair os jovens, os de idade e os de espírito, para a filosofia.