terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Porventura poucos serão os que se deixam cativar pela filosofia tal como são muitos aqueles que, ao encontrar a raposa do Principezinho, se apressam a ver nela o reflexo dos seus preconceitos. Estamos normalmente couraçados, impenetráveis a qualquer fascínio exterior que venha interromper o nosso marasmo. As nossas evidências são as nossas muralhas confortáveis, os nossos pequenos mundos reduzem-nos à pequenez dos nossos quotidianos. Preferimos os pensamentos sedentários, encaixotados, devidamente arquivados e assustam-nos os abismos e as profundidades. A filosofia surge-nos como a ameaça da esfinge, interpela-nos, desafia-nos, estilhaça as nossas crenças e obriga-nos a tomar consciência de nós mesmos. A filosofia incomoda-nos, obriga-nos a reflectir, a confrontar ideias, a aprofundar e fundamentar as nossas opiniões. A filosofia impede-nos de nos escondermos nos nevoeiros das opiniões do senso comum, partilhadas por muitos e descartáveis porque sensíveis às mudanças dos tempos e das modas. A filosofia exige que nos tomemos a sério e que façamos da nossa vida um projecto em construção, um projecto com sentido e viabilidade.
Para aqueles que acreditam que viver é deixarmo-nos ir na corrente, a filosofia é desnecessária, luxo intelectual, perda de tempo. Para aqueles que confundem ser com parecer e se deixam moldar de acordo com as conveniências, suas e dos outros, a filosofia é a voz da consciência que é preciso silenciar. Para aqueles que preferem as respostas totalitárias, consoladoras, a filosofia é altamente subversiva, revolucionária, conspirativa porque mina os alicerces da autoridade e desafia cada homem a assumir a sua liberdade de pensamento.
Por tudo isto poucos serão os que se deixam cativar pela filosofia. A própria filosofia contribuiu para esse estado de coisas ao distanciar-se da vida real dos homens enclausurando-se nas universidades e em círculos restritos de eruditos. O discurso filosófico tornou-se hermético, transformou-se numa cadeia de raciocínios especiosos quase impenetráveis. A filosofia ganhou teias de aranha, identificou-se com uma antiguidade que se preserva num armário recôndito. O discurso filosófico anquilosou-se, cobriu-se com a patine do tempo e privilegiou as palavras menos utilizadas e os conceitos mais complexos.
Porém, actualmente, a situação modificou-se. A filosofia dá mostras de querer sair da sua caverna e chegar a todos sem se descaracterizar, sem se transformar numa forma qualquer de saber popular. Sem perder a seriedade, a filosofia redescobriu o poder da provocação, da ironia, transformando a incomodidade da interrogação numa arma que conduz à reflexão crítica, à fundamentação criteriosa das ideias.
Continuarão a ser poucos os que se deixam cativar pela filosofia porque as ideias feitas, os preconceitos custam a desaparecer e é mais cómodo persistir na ideia de que a filosofia é assunto demasiado complicado, saber alheado da realidade, quase que místico, quase que fóssil. Num mundo de saberes encaixotados e de ideias prontas a serem consumidas, a filosofia mantém a sua incomodidade e a sua diferença. E no fundo é essa incomodidade e essa diferença que podem atrair os jovens, os de idade e os de espírito, para a filosofia.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

- Stor - afirmou o Pedro - sempre ouvi dizer que os gostos não se discutem. Se os valores são gostos não há qualquer interesse em discuti-los.
- Também é verdade que se diz que a voz do povo é a voz de Deus - interpôs o professor - Mas mesmo assim questionamos o senso comum.
- Por isso é que os filósofos são esquisitos - adiantou-se o Pedro - Têm a mania de questionar tudo. Os filósofos não acreditam em nada. Para eles há sempre que encontrar explicações racionais.
- Os filósofos são de facto esquisitos, como dizes - confirmou o professor - mas é essa peculiaridade que os impede de adormecerem nas verdades feitas, nas crenças injustificadas que levam à intolerância. A sabedoria popular deve ser examinada. Muito dela pode ser aproveitado mas temos que saber pensar pela nossa cabeça e não pela cabeça dos outros, mesmo que eles sejam mais velhos e presumivelmente mais experientes.
- Voltando aos valores - interrompeu a Madalena - Eles são ou não gostos?
- Há quem os confunda com gostos e por isso os torne tão voláteis.
- Tão quê? - perguntou o André
- Tão mutáveis e transitórios.
-Poderia falar em português? - pediu o André
- Se os valores são gostos eles são individuais e inexplicáveis; cada um tem os seus e mesmo aqueles que temos podem alterar-se com o tempo e até desaparecer. Para os que identificam os valores com gostos nós damos valor às coisas porque gostamos delas.
- Isso parece-me ser evidente - comentou a Madalena
- Ou será que gostamos das coisas porque elas têm valor? - perguntou o professor
- Com essa é que me deu a volta à cabeça - afirmou o Pedro - Quer o stor dizer que os gostos são determinados pelos valores que temos?
- Os valores são qualidades que atribuímos às coisas e que estão na base das nossas preferências.
- Parece-me que essa posição é mais razoável - afirmou a Madalena - Podemos partilhar valores e eles são demasiado fundamentais para serem identificados com meros gostos efémeros.
- Se os valores não são gostos nem desejos, então o que é que eles são? - perguntou o Pedro
- Há quem defenda que eles têm uma existência própria. Os valores são independentes dos homens e das coisas ou situações às quais são atribuídos.
- Os valores têm corpo? - ironizou o Pedro - Ao menos que seja o da Angelina Jolie.
- Os valores não são coisas; a sua existência é como a das ideias platónicas. Recordam-se da "Alegoria da Caverna"?
- Então os valores são ideais? - perguntou a Madalena
- Sim, mas não são criações dos homens pois são anteriores a eles e subsistem mesmo quando os homens não os queiram reconhecer.
- Mas os valores são individuais - protestou o Pedro - Cada um tem os seus.
- Essa posição é defendida pelos subjectivistas. Para eles os valores são criações do homem. Não há valores universais e é absurdo pensar que os valores sejam independentes dos sujeitos. Valorar significa criar valores e isso é um atributo especificamente humano que implica liberdade.
- Se os valores forem criações individuais então voltamos ao início: porquê discuti-los se, para cada um, os valores são aquilo que ele cria? - intrometeu-se a Madalena - Aquilo que vale para mim pode ser totalmente desprezado pelos outros. Como é que se validam os valores?
- Para fugir a esse subjectivismo extremo há quem defenda que a construção dos valores não é individual mas sim colectiva e cultural; cada cultura cria ou adopta os seus valores. Se os valores são culturais então todos aqueles que fazem parte da mesma comunidade partilham basicamente dos mesmos valores e podem entender-se.
- Mas afinal os valores são objectivos ou subjectivos? - perguntou o Jeremias que tinha estado a acompanhar a aula pelo manual
- Essa questão só pode ser respondida através da apresentação das várias respostas possíveis e da sua justificação. É precisamente essa a essência do exercício filosófico: confrontar diferentes perspectivas, examiná-las, discuti-las, formar a nossa própria opinião.