sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

O Homem como ser moral

O homem é um ser moral porque é um ser de consciência, isto é, que tem consciência, um ser de convivência e um ser de liberdade.
É necessário, antes de mais, que o homem se assuma como um sujeito, uma individualidade irredutível a outras individualidades, uma existência diferente e diferenciada. O núcleo central da moralidade é o eu, mas não um eu encerrado sobre si mesmo, autista, reduzido a uma prisão aquário, antes um eu aberto ao exterior, curioso e em trânsito.
Aquilo que me permite saber-me como sujeito e constituir-me como indivíduo é a consciência. Este eu de que me apercebo através da consciência não se limita a um corpo ou um conjunto de sensações mas também não se reduz ao espírito. Se não posso ou não devo considerar os sentidos e os sentimentos como ilusões também não posso esquecer a importância do pensamento como instrumento precioso de investigação da realidade. Este eu de que me apercebo através da consciência não é uma identidade estática, inalterável, mas uma complexidade, um edifício em construção. O eu não é uma pousada ou um eremitério, um refúgio, mas um caminho, delineado passo a passo, um percurso tão sinuoso quanto as circunstâncias e os projectos. O eu não é uma mónada, mas uma existência que edifica o seu sentido e significado na abertura, no contacto e no diálogo autêntico.
É pela consciência que o homem se distingue do animal, é pela consciência que o homem se define como ser moral. É mediante a consciência que alguns actos do homem se convertem em acções significativas e transformadoras do próprio homem. É a consciência que possibilita quer uma visão retrospectiva quer projectiva da realidade e das nossas acções e desta forma ultrapassar a sensação do imediato, tornando-nos seres de horizontes amplos.
Se, porém, cada homem é individual, único e irrepetível, um eu que necessita de se afirmar e de se realizar, isso não significa que cada um de nós se possa isolar na sua esfera de auto-consciência e ficar imune aos outros.
Os outros não são apenas o pano de fundo da minha existência ou objectos do cenário onde represento a minha vida, mas a condição necessária da minha afirmação e do meu ser. Os outros não são apenas os meus limites, um mal necessário, o purgatório justificado pelas vantagens que eventualmente possa ter, mas ocasião e fonte de partilha, diálogo, descoberta daquilo que sou e represento. Os outros são a minha contingência mas também o espelho em que me revejo na minha alteridade.
Só por intermédio da convivência me sei diferente e reconheço nos outros as diferenças que os constituem e os tornam seres independentes de mim e auto-justificados. Só por intermédio dos outros descubro a minha humanidade e me afirmo como homem entre homens, como ser em formação e desenvolvimento, como ser verdadeiramente moral.
Assim se excluem quer o egoísmo, a exacerbação de um eu que exclui os outros e que, por isso, se torna vazio e estéril, quer a aceitação passiva dos códigos sociais num esforço de nos tornarmos boas ovelhas do rebanho.
Esta relação com os outros não é, no entanto, uma relação de harmonia pré-estabelecida. Os outros completam-me mas também me limitam, impedem-me de concretizar todos os meus desejos. Os outros não podem, no entanto, ser as desculpas que justificam a passividade, o fatalismo, a desistência dos projectos, a abdicação da liberdade.
Por isso, o conflito e a procura de consensos que não excluam as diferenças estão na base da moralidade. Por isso, o domínio da moral não é o domínio da indiferença, do tanto faz, do encolher de ombros. Por isso o domínio da moral não coincide com o da legalidade social, tantas vezes caracterizado por um conformismo e um pragmatismo feitos de hipocrisias e compromissos.
Eu não sou sem os outros nem os outros são sem mim. É esta relação de reciprocidade, alicerçada no respeito mútuo, que constitui o plano da moralidade, só esta relação permite o desenvolvimento integral e conjunto dos homens. Há, pois, que passar do eu ao nós, não um nós rebanho, massificado e massificador, mas um colectivo de homens que crescem conjuntamente e que não só preservam as diferenças e especificidades de cada um como as constituem como motor do enriquecimento mútuo. Este é concerteza um ideal que contrasta com a realidade mas são afinal os ideais que dão sentido à vida dos homens.
A condição fundamental da moralidade é a liberdade. Uma moral da submissão pode ser muito conveniente e desejável para os poderes instalados e para aqueles que se constituem como seus arautos e defensores, mas não é uma verdadeira moral porque nega aos homens, a cada homem, a possibilidade e a capacidade de escolherem por si próprios.
A liberdade é escolha e destino humano; escolha porque fundamentadora de todas as opções e destino porque única possibilidade de afirmação do homem. A liberdade é sonho e realidade, meta e vivência, a liberdade não é a reprodução de uma qualquer ilusão perdida ou nunca encontrada, mas uma incessante procura e uma urgência. A liberdade tem as cores do desejo e as contingências próprias do ser humano.Toda a liberdade é circunstancial e provisória porque os homens abstractos e as qualidades abstractas só existem no papel e nos raciocínios estéreis, encerrados em horizontes de pura formalidade.Toda a liberdade é existencial e só depois essencial e ainda assim porque existencial, porque real e vivenciada se bem que também sonhada e projectada.
Sou livre porque humano, incompleto, inseguro, insatisfeito, projecto e acção, superação, percurso e construção. Sou livre porque e enquanto assumo cada um dos meus actos e em especial aqueles que me comprometem porque revelam os meus valores ou, melhor, a minha escala de valores e denunciam os meus princípios morais. Sou livre porque sei que, apesar de diferente, pelo facto de ser homem partilho de algo de comum com todos os homens e igualo-me a eles sem deixar de ser único e irrepetível.
Só há liberdade na e pela responsabilidade porque a liberdade não é descomprometimento, evasão da realidade, submersão em mundos virtuais, alienação.Temos, antes de mais, um compromisso para com a vida. Somos responsáveis por nós e pelos outros e aí reside a nossa maior dignidade e liberdade. Quando nos isolamos por detrás dos nossos muros invioláveis e obrigamos o mundo a ficar lá fora, para além da nossa realidade, assim reduzida à sua mais ínfima condição, a liberdade deixa de ter sentido e equivale ao vazio. Quando nos tornamos reis e senhores de um reino reduzido às nossas leis, a liberdade prende-nos nas fronteiras de nós mesmos, banaliza-nos, empobrece-nos irremediavelmente, desumaniza-nos. As tiranias e as ditaduras não só limitam ou destróiem a liberdade dos homens que lhes estão submetidos como tornam os tiranos e ditadores menos livres porque escravos das suas próprias arbitrariedades e caprichos.
Só haverá verdadeira liberdade quando as fronteiras e prisões deixarem de existir dentro de nós, quando abandonarmos decisivamente as desculpas e pretextos que continuam a atar-nos à nossa menoridade quando não à nossa mediocridade.
É, pois, na afirmação da minha liberdade que me assumo como um homem em construção junto com os outros e não apesar dos outros e muito menos contra os outros. Os limites dessa liberdade são os limites da humanidade, do respeito integral pela minha pessoa e pela pessoa de cada um que partilha comigo a existência. Os horizontes dessa liberdade serão aqueles que os homens em conjunto quiserem e souberem construir.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2007

Reflexão sobre os valores

Que valores subsistem num mundo complexo, aparentemente condenado a viver na instabilidade, num relativismo mais ou menos radical ou na intolerância? Às crises económicas, políticas e culturais, que alguns dizem cíclicas, acrescentam-se as crises de valores que geram desorientação ou despoletam movimentos tradicionalistas defensores da ressurreição urgente de valores considerados em vias de extinção. Retoma-se a discussão sobre a perenidade ou historicidade dos valores e como solução renova-se a tese de que os valores são bens em si mesmo, têm vida própria e são independentes dos homens que os atribuem e das coisas ou situações a que são atribuídos.
Considero que, mesmo que os valores do passado fossem melhores do que os nossos, não se pode simplesmente recuperar o passado ou regressar atrás no tempo. Transformar a questão dos valores num assunto de crença apenas pode contribuir para aumentar a intolerância. É necessária uma reflexão racional, crítica e radical sobre esse tema dos valores que ou é ignorado ou é banalizado ou convertido num discurso incompreensível e impenetrável. Cabe à filosofia protagonizar e promover uma discussão ampla e profunda sobre a importância dos valores nas nossas sociedades contemporaneas e sobre a necessidade de os alicerçar não sobre a tradição mas sobre o diálogo.
Vivemos em sociedades multiculturais e isso obriga-nos a escolher a tolerância como um valor de referência e a evitar clivagens e posições fundamentalistas. A tolerância não pode porém justificar uma posição de indeferentismo moral. Têm que existir valores claros e sólidos que norteiem a nossa vida. Esses valores devem ser escolhidos por nós e não impostos de fora.
Podemos viver comodamente e satisfatoriamente com valores descartáveis. Podemos ser como os girassóis virando-nos para o sol em adoração silenciosa, sem vontade própria ou tentarmos isolarmo-nos do mundo, acreditando que somos o centro de tudo e mudando de valores de acordo com o nosso estado de espírito do momento. Podemos escolher mas somos definidos pelas nossas escolhas. Por isso se torna imprescindível que as nossas escolhas sejam verdadeiramente nossas e feitas de acordo com um conjunto de valores e de princípios que consideramos fundamentais.
A nossa acção, aquilo que somos, deve ser guiada por um projecto e esse projecto constrói-se em volta de um núcleo de valores que são o seu fundamento. Se esse núcleo de valores se alterar profundamente ou demasiado depressa caminhamos desamparados.
Os valores não são algo que se tem como um bem material qualquer, uma caneta ou um jogo de computador, mas são algo que nos ajuda a ser. Os valores comandam as nossas preferências e determinam quem somos ou quem queremos ser.
Sem valores ou com valores de ocasião, a nossa vida não tem sentido, propósito, transforma-se numa errância labiríntica num deserto que é o nosso interior. Com valores importados, aceites passivamente, a nossa vida uniformiza-se e acabamos por ser convertidos em animais de rebanho a reagir da mesma forma aos mesmos impulsos.
A questão dos valores insere-se assim na questão fundamental "quem somos?" e só pode ser respondida quando formos capazes de nos assumirmos como seres racionais, livres, autónomos e problematizadores. Se, por qualquer razão, desistirmos da racionalidade, da liberdade, da autonomia ou da inquietação própria de quem não tem certezas absolutas e eternas, a questão dos valores deixa de ser importante e podemos mesmo afirmar que os valores são inúteis acessórios no mundo de hoje.